sábado, 11 de agosto de 2007

Conto

Eram cinco e meia da manhã. Da janela do avião ele não compreendia aquela cidade enorme. De cima das nuvens ela parecia um monte de pontos luminosos, abaixo das nuvens ela ficava ainda mais confusa. Ele percebia os prédios, as praças, imaginava o frio que fazia lá embaixo, mas não compreendia a cidade.

Pegou um táxi no aeroporto e seguiu para Pinheiros. Pediu a motorista para parar na Teodoro Sampaio, numa padaria 24 horas, não havia comido nada desde o dia anterior preocupado com a viagem. Um velho português com um chapéu branco dobrado abria um largo sorriso num bom dia. Pediu um pão com mortadela bolognha e um capuccino. Nada mais conhecia da comida daquela gente, das inúmeras opções do menu. Sentou e assistiu ao noticiário local. Uma violência que era corriqueira no lugar de onde vinha, obras da prefeitura, trânsito engarrafado e um milhão de opções culturais. Agora sim, ele sabia que estava na cidade do pecado!

Caminhou a pé até o endereço que havia recebido de sua amiga que concordara em o receber em seu apartamento. Uma garoa fina começou a cair. Tocou por várias vezes a velha campainha que ouvia tremer lá dentro, mas sem resposta de quem quer que fosse. A chuva engrossava e ele correu até a esquina onde havia uma placa indicando um hotel. “Bali” dizia a placa com a sineta na recepção. Um homem magro, barba malfeita, cara de uns 35 anos apareceu com uma ficha para preencher. “Você fica no 32, terceiro andar à direita, o elevador está enguiçado”.

Ao atravessar a porta estranhou uma bandeja rolante que havia no centro, lembrava uma portinhola de motel por onde se passa a conta e recebe a nota. A cama grande com botões de liga/desliga da TV e controle de luz não enganava: estava mesmo num motel antigo. Ligou o ventilador de teto, baixou um pouco a luz, tirou a roupa e se jogou na cama. Estava exausto porque não tinha conseguido dormir no avião. Lhe incomodava aquele barulho da fuselagem resistindo a pressão, como se o vento fosse abrir aquela lata a qualquer hora. Passara a madrugada trabalhando em cima de uma entrevista, um dos motivos que o levara ali. Resistindo ao sono ligou a TV num noticiário que mostrava um estilista famoso que havia roubado um jarro de um cemitério. Depois uma chamada ao vivo direto da cratera que se abriu nas obras de construção de uma estação de metrô, uma tragédia que animava a concorrência dos noticiários há uma semana.

A cratera no metrô, o roubo no cemitério, o português com o chapéu dobrado, a taxista negra e gorda, a noite sem dormir, a entrevista que elaborara na noite anterior, a cidade vista do alto, a gigantesca fila do check-in, o aperto de mão frio de seu pai no estacionamento do aeroporto... as pálpebras tombaram frente ao sono e ele se imaginou sobrevoando a cidade de madrugada. Sentia o frio lhe cortando a pele. Luzes piscando em avenidas com quilômetros de engarrafamento da fila do check-in do aeroporto. Tudo sucumbindo a uma enorme cratera que se abria no meio da cidade que ia engolindo carros e prédios e pessoas na fila do check-in, como em um filme trash de terror dos anos 1980. Uma lava marrom de isopor e lama ia saindo da cratera e subindo, ele se sentia na abertura da novela “Deus nos acuda”, com as belas comissárias de bordo em suas saias curtas empunhando suas bandejas como garçonetes de um rock-bar. Quando a lama chegava ao pescoço acordou de súbito.

Eram 13h38, havia dormido bastante. Sentia cansaço mas achava injusto perder seu tempo dormindo enquanto podia aproveitar a maior cidade da América do Sul. Tomou um banho, vestiu roupas limpas, trancou a porta e saiu. Não sabia por onde começar, mas foi descendo a rua. Na Fradique Coutinho achou vários lugares interessantes para comer. Havia lojas, banca de jornal e banco. “Estou salvo” – pensou. Entrou em um restaurante com vasos de flores frescas à porta. Fez um prato modesto pra sua fome, sabia que precisaria gerenciar bem seu numerário para não passar dificuldades.

Forrou o estômago e seguiu o fluxo da rua tomando uma lata de chá gelado enquanto caminhava. Se apertava contra o frio na fina camiseta que trajava. Percebeu o quão inadequado estava seu vestuário para os 18 graus que fazia, num dia nublado. Não fazia aquele frio na sua terra, ninguém usava cachecol ou três peças de roupa sobrepostas de onde vinha.

Não tinha intenção alguma ao caminhar, talvez a falta de objetivo o motivara naquela tarde. Andou até uma larga avenida cheia de restaurantes também, mas estes eram mais sofisticados. Do outro lado da rua placas de interdição e faixas de isolamento. Um guincho gigantesco revolvia a terra. Por uma fresta no tapume percebeu que se tratava da tal cratera do metrô. Subiu a Rebouças e voltou ao hotel.

***

Pela terceira vez tentava visitar o MASP sem sucesso. Havia chegado 7 minutos atrasado. Contrariado, seguiu a Paulista sem rumo, levado pela total falta de objetivo. Depois da Alameda Rio Claro encontrou um homem de olhos puxados vendendo yaksoba. Achou que não poderia perder a oportunidade de provar um dos frutos da migração sino-nipônica para a América, ali, diretamente na rua. Falando um português sem sotaque algum o homem abria um isopor perguntando se queria beber refrigerante ou cerveja. Com certeza aquele homem não estava interessado em discutir o processo de migração japonesa em substituição à mão de obra escrava no começo do século. Como bom turista em busca de coisas exóticas, queria mesmo algo mais tipicamente oriental, mas achou mais adequado tomar uma cerveja. Aquela mistura de macarrão achatado com molho, frango e verduras nem estava tão bom quanto o yaksoba que se acostumara a comer próximo à Praça do Ferreira: comida japonesa feita por chineses legítimos, aquilo sim era típico! Pagou e saiu rindo-se sozinho na Alameda das Flores.

Não era o fato de comer sozinho ou estar numa cidade estranha, algo mais o incomodava. A silhueta morena de uma jovem vendedora de rosas lhe lembrou a mulher que deixara em sua cidade. Ela por pouco não viajara com ele. Tinha o trabalho, a família, coisas que ela sentia que não podia largar nem pela única semana que ele propôs. Sabia o quanto ia ser bom ter sua presença e poder compartilhar as mesmas estranhas experiências naquele lugar.

Andou até o Centro Cultural da Caixa. Estava em cartaz a mostra de um fotógrafo de celebridades. Mulheres belíssimas em momentos de glamour e também nas atividades cotidianas. Uma foto chamou sua atenção entre todas as outras. Era Brigitte Bardot calçando longas meias translúcidas, vestida em uma toalha, com o cabelo molhado. Imaginou sua musa saindo do banho quente. Pele molhada e olhos semi-cerrados a passar rimmel olhando-se no espelho. Passou 5 minutos inteiros fitando aquela imagem e divagando sem sequer piscar os olhos. Era grande o desejo por aquela mulher, Brigitte Bardot fora apenas o meio de resgatar essa lembrança, ele pensava mesmo era em sua jornalista predileta, que deveria estar entre pilhas matérias para selecionar, ler e publicar. Sentiu o coração apertar forte e decidiu ligar pra ela.

“O telefone solicitado encontra-se fora da área de cobertura ou temporariamente desligado”. Duro golpe em seu desejo. Ali sim sentiu-se completamente sozinho naquela cidade que ainda sequer compreendera. Não havia nada mais de interessante ali, sentiu vontade de ir embora.

Perambulou por um tempo e mais um tempo pela Paulista. Uma flor caiu sobre seu rosto e ele a tomou nas mãos. “Os ipês só costumam florescer no outono, mas com esse aquecimento global ninguém sabe mais de nada, não é mesmo?” – comentou uma senhora que passava. “Então isso é um ipê!” – pensou consigo. Lembrou das lições da alfabetização, quando aprendia palavras com a letra i. Não havia ipês de onde vinha, mas os livros de abecedário eram feitos naquela cidade, onde os ipês floresciam a cada outono, até os fenômenos de mudança climática mudarem o amadurecimento das flores. Começou a achar o assunto aborrecido e decidiu ligar para ela novamente.

O telefone chamou duas vezes e ela atendeu. Era uma voz de meso-soprano, grave o bastante para ser sensual. Disse que estava entrando no cinema e que não podia falar muito. Ele ensaiou duas ou três coisas para dizer, algo que falasse da falta que ela fazia naquele momento, mas sussurrou somente “tenho uma coisa pra ti”. Girava a flor entre seus dedos, acariciava-lhe o rosto enquanto ouvia a outra voz apressada. “Ok, falo com você depois, quando você puder falar”. Esperou no fone até sentir seus dedos pressionando o botão do aparelho encerrando a ligação. Queria aqueles dedos, queria senti-los, não só ouvi-los, mas eles encerraram aquele diálogo abruptamente.

M. Platini

2 comentários:

Anônimo disse...

porra vc foi machadiano Mplatini!!1
fico na espera de mais material

Anônimo disse...

mÊu... tem que ter muita sensibilidade e capacidade de estranhar essa cidade pra poder descrevê-la e percebê-la com tanta riqueza de detalhes.
Tá de parabéns, Mister M.
Abraço aos irmãos cearenses!

Ass: Pensador